"Caso o cotidiano lhe pareça pobre, não reclame dele,

reclame de si mesmo que não é poeta o bastante

para evocar as suas riquezas."


Rainer Maria Rilke

Cartas a um jovem poeta.Porto Alegre: L&PM,2006.p.26




sábado, 14 de maio de 2016

Novos vizinhos e o diário de uma amizade


No início do ano recebemos vizinhos novos - os ciganos.
À primeira vista, eram um tanto "estranhos".
Nós, moradores mais antigos, não somos donos da rua, a qual todo novo residente precise se identificar, mas logo na chegada dos ciganos, exclamamos: ihhhhh!

Foram muitos os olhares atentos de todos sobre qualquer movimentação. Algumas reclamações surgiram, mas todas se fundamentavam na resistência aos "novos vizinhos'.

_Será que vão tumultuar? Farão muito barulho? ...

O tempo foi passando e os vizinhos, na verdade, só são muito insistentes e estão sempre pedindo coisas. No mais, sem problemas.



Mas, ao contrário, o que os ciganos diriam de nós, os vizinhos-que deveríamos agir como "anfitriões"?
Talvez nos achem antipáticos, fechados ou mal-educados.

Entre meias-conversas ouvi a queixa das ciganas de que alguns vizinhos as ignoram e nem cumprimentam. Em tom de desabafo, uma delas, a mais idosa  relatou-me que as pessoas sempre pensam que os ciganos furtam, que pegam as crianças, proveniente de um preconceito antigo.
Eles, no entanto, não querem desavença com ninguém, oferecem as mercadorias (panelas, lençóis, edredons, etc)  porque vivem do comércio.
A cultura e os hábitos podem ser diferentes, contudo é o nosso egoísmo e o preconceito que nos segrega.
Eis então, aqui, uma oportunidade para agir de outra forma - sermos mais acolhedores, compreensivos e amorosos. Foi com essa proposta que passamos a olhar nossos novos vizinhos com mais carinho e aceitação.

Hoje, passados seis meses, os ciganos continuam por aqui. Nós já conhecemos alguns de seus hábitos, suas reações, suas dificuldades de se comunicar.
São um retrato do vizinho de antigamente: aquele que dá "bom-dia", pede um pouco de açúcar, chama para uma conversa e que percebe quando nos ausentamos.
Outro dia, sai e quando voltei ouvi de uma das ciganas:" Onde é que tu estavas? " Coisa rara, hoje em dia, em que mal vemos os vizinhos e alguns nem conhecemos direito.
Sem contar que, os ciganos trouxeram alegria a uma quadra de gente muito "sisuda".
Algumas vezes é bem verdade que são "espaçosos", comparados aos outros vizinhos. Falam alto, gritam, usam dialeto próprio e incompreensível, mas movimentam a pacata rua.
Não são nada envergonhados, conversam com todas as pessoas que passam. Utilizam-se de um recurso estratégico para puxar conversa: perguntam as horas a cada uma delas.
Quando vão à nossa casa, batem palmas e nos chamam de "queridos". ( Nem sei se merecemos o adjetivo.)
Seus probleminhas domésticos são compartilhados conosco - é o cano que entupiu, os fósforos que acabaram,  etc. A maioria deles é analfabeta, então pedem para lermos as bulas, para anotarmos endereços, telefones.
Querem ajuda pra muitas coisas, mas já estou convencida que a ajuda deles tem outro objetivo: APROXIMAÇÃO! E por quê não? Qual o problema?



Novos vizinhos- Parte 2-  A cordialidade   Escrito em 07/06/2016

Agora, de vizinhos apenas, passamos a parceiros. Já nos chamamos pelos nomes e
somos cordiais uns com os outros.
Emprestamos alguns objetos: ferramentas, por exemplo,  mas sabendo que sempre é preciso buscá-los depois.
Os ciganos aceitam tudo que lhes dermos, pois são pessoas muito simples e humildes.
As mulheres gostam bastante de conversar, os homens são mais reservados.
Soube que casam-se muito cedo e o matrimônio acontece de preferência entre famílias ciganas. Na tenra idade, os filhos já são prometidos em casamento pelas famílias. Noivar aos 10 anos é muito natural e casar aos 15, mais ainda. O casamento é oficializado entre os ciganos, sob um ritual,  mas não é realizado no cartório como registro civil.
As festas de enlace duram três dias com muita música e comilança.
Hoje eles não vivem mais em barracas, preferem alugar casas, mais práticas e espaçosas, que possam se adequar ao estilo cigano. Na verdade, é quase um acampamento debaixo de um teto. 
As mulheres solteiras podem usar calça comprida, mas as casadas vestem somente saias longas.
As viúvas andam com o cabelo preso.
Isso tudo tomei conhecimento nas conversas diárias, geralmente depois do almoço, quando elas sentam-se ao sol.


Novos vizinhos- Parte 3 - Os hábitos e costumes    Escrito em 20/06/16

A rotina dos ciganos é voltada às negociações . Negociam um corte de grama por um refrigerante, um cesto de roupa lavada por um preço acessível. E desta forma, as mulheres vão conseguindo se manter.
Enquanto isso, os progenitores vão para a estrada vender edredons para os colonos. Alguns dias depois ou ao final do dia voltam para reabastecer a casa de alimentos e suponho - pagar as contas.
Quase todos mesmo sendo analfabetos, se utilizam e entendem um pouco da tecnologia dos celulares, tablets, videogames. Quando há necessidade de ler alguma coisa, pedem para as pessoas. Não se intimidam. Por causa do analfabetismo na residência não há revistas, livros, calendários, papéis, nem canetas. Isso não tem serventia para eles.
Costumam se perder no tempo, adivinham as horas e não se interessam muito por datas.
A alimentação é a base de muita gordura, condimentos e farinhas. Utilizam pimentas no cardápio.
Os ciganos daqui, agora já estão mais socializados , habituaram-se a devolver as coisas que pedem. (Isso nos deu um cansaço, mas foi um avanço.)
A partir daí começamos também a receber deles alguns presentes como: pães, sopas, arroz com leite, comidas ciganas. Estranhamos o tempero, mas alguns estavam bem gostosos. Tentamos retribuí-los com algumas pratos ou doces gostosos, também.
Trouxinhas de repolho
Alguns hábitos são diferentes dos nossos, por exemplo, elas estendem as roupas sem prendedores.Tudo que foi lavado é exposto na rua, em dia ensolarado ou no meio da cerração, apenas dobrado sobre as cordas, nos muros, nas grades igual como nos acampamentos.
Os tapetes e colchões são colocados no chão ao sol diariamente, sem preocupação em ser discretos.
As mulheres não produzem nada artesanal, apenas realizam as lidas domésticas e cuidam das crianças. A educação não estimula à fala nem aos nossos hábitos de higiene, mas são bem pacientes com os pequenos. Não costumam levá-los à praça nem oferecer muitos brinquedos. Se distraem só com o que tem pra brincar!
Pela própria convivência o vínculo afetivo está aumentando. Já somos mais tolerantes, outros vizinhos já conversam com eles, mas alguns ainda estão ariscos até ao cumprimento. Azar, destes!! Não sabem os amigos que estão perdendo.


Novos vizinhos - Parte 4 - A grande festa        Escrito em 27/06/2016

Os ciganos foram convidados para um casamento importante, de famílias de "ricaços".
Os preparativos começaram há um mês. O assunto girava em torno da grande festa.

As ciganas prepararam os cabelos, as saias , os sapatos. Até que chegou o dia da viagem - é hoje!

A festa está prometendo ser famosa entre a comunidade cigana. Vem gente até do exterior. Coisa fina!
A alegria é contagiante entre elas.
Os dois cachorros que adotaram vão ficar. Pediram para nós darmos uma "cuidadinha" na casa e neles. Já compramos ração extra para a "Guria" e o "Lobo".

A camioneta está carregada de roupas, travesseiros e cobertores. É só dar a partida!





Novos vizinhos - Parte 5 - Os cuidadores  Escrito em 27/06/2016


E eles então deram a partida. Como toda família na hora da saída sempre ocorre um estresse, reflexo da ansiedade, mas enfim foram para o tão esperado passeio.

Antes disso. as ciganas pediram perfumes, espelho, pinça de sobrancelhas, esmalte, etc. Estavam radiantes de felicidade!


Parte 6- Outro dia                        Escrito em 30/06/2016

Chegamos na casa da praia, à noite e encontramos as chaves dos ciganos penduradas no portão, bem à vista. Qualquer um poderia pegar. Eram três chaves. Suponho que além da chave do cadeado do portão, as outras fossem da casa.
Com tanta violência e roubos, ficamos surpreendidos com o desprendimento deles e o tamanho da confiança de que iríamos cuidar dos animais (dois cachorrinhos) e da casa.
E foi o que fizemos durante três dias. Sendo que no primeiro, o cachorrinho -filhotão, o Lobo, estava muito abatido. Não queria nem caminhar nem comer.
A sorte é que com muita paciência e carinho, ele foi melhorando pouco a pouco.
A quadra ficou sem movimento. Sem gritos. Sem graça.
Acho que é como vai ficar, o dia que forem embora para outro lugar.
Depois de três dias eles chegaram. Gritando e batendo palmas como sempre.

Parte 7 - Troca de gentilezas e os estudos

Agora é assim. Tudo de bom que fazem para comer, dividem conosco. Não adianta dizer que não precisa trazer, porque eles trazem e pronto. E tudo o que preparam dizem que é "à moda cigana".
Várias tardes, ficamos juntas um longo tempo conversando.
Pediram-me que alfabetizasse apenas o jovem de 17 anos. Ele precisa saber ler para ter a habilitação de motorista, porque dirigir ele já sabe muito bem.
Eu confesso que gostaria de alfabetizar as mulheres. Acho um grande atraso e uma enorme dependência, elas não saberem ler nem escrever.
Fiz um livro improvisado para a jovem tentar ensinar o que sabe das letras para o marido, mas não levei fé que isso ia dar certo. Para minha surpresa, os dois estão estudando juntos à noite e ela ainda anota o dia de cada lição. É uma pedagogia à moda antiga, mas é a alternativa possível.
Outro dia, ele me mostrou o que tinha aprendido e até leu algumas palavras. Verifiquei que falta ler e escrever com mais regularidade. Não há disciplina suficiente, mas o importante é que o jovem está motivado e voltou a se apresentar na escola à noite. Infelizmente, o período agora é de férias escolares e terá que aguardar o mês de agosto.

Parte 8 - Hipertensão

Um dia perguntaram-me se eu tinha medidor de pressão arterial. Eu levei e medi, desde aí virei uma pseudo-enfermeira da família. Até que outro dia, uma delas estava com a pressão muito alta e precisei levá-la ao Posto de Saúde do balneário.
Medicada, voltou para casa mais tranquila. Agora ficaram sabendo que eu dirijo.-tô ferrada.
No dia seguinte, as ciganas pediram uma caroninha até o supermercado. Elas pedem de um jeito que não dá de recusar. (Danou-se!)

Parte 9 - Trabalho comunitário?

Esse inverno está muito frio e úmido e dificulta a secagem das roupas. Imagine isso numa família grande. Por esse motivo, outro dia a vó cigana pediu-me para estender roupas no varal da nossa casa.
Gosto de ver roupas estendidas voando ao vento, então fiquei alegre em ver o pátio todo colorido.




















Prova de amizade    (Escrito em 21/08/2016)

Outro dia precisei submeter-me a um procedimento cirúrgico relativamente simples em outra cidade, sem . Nem comentei com elas, pois já sabia que se preocupariam comigo.
Ao voltar no mesmo dia, perceberam meu isolamento por conta do repouso necessário, então fui obrigada a explicar o motivo, pois vieram várias vezes à nossa casa.
Assim que souberam mostraram -se solidárias e reclamaram por não serem avisadas. Teriam ido junto - comentaram.
Passou-se uma semana e elas telefonaram, prepararam canja. O carinho e a atenção foi impressionante.
Não havia necessidade de tanta preocupação, mas trata-se de uma atitude normal entre os ciganos no momento que alguém querido está fragilizado. É prova de amizade!

Festa de aniversário (Escrito dia 23/08/2016)

A linda criança da família completou três anos. É um menino, que há pouco aprendeu a falar algumas palavras. Ao conhecê-lo fazia apenas gritos, sussurros, gestos e caretas. Com a convivência fui estimulando-o e ensinei-as a fazer o mesmo. Com paciência a expressão oral foi dando lugar a palavras - um misto de português e dialeto cigano.
No dia 20 de agosto ele teve uma festa pelo seu aniversário. Em um dia, as ciganas encomendaram a decoração, os salgados, doces e um lindo bolo, além da bela decoração. O ornamentação da festa não tinha características ciganas, seguia os moldes infantis.
O que deu um ar diferente foi a chegada de muitas famílias ciganas em carros e camionetas e a falazada. Os homens num lado e as mulheres de outro. Tanto eles como elas falavam o dialeto e o nosso português.
Nenhuma bebida de álcool, só guaraná e muita alegria.
Fui convocada para fotografar, mas não imaginei que seria tão difícil. Não existe ordem, nem pose todos se atravessam na frente da câmera. Foi aí que decidi registrar a festa por si só.
Imaginem uma grande mesa cheia de enfeites, doces e salgados em grande quantidade e as pessoas a vontade se servindo de tudo.
Depois chegou um carro de mensagem de carinho e tudo continuou assim... Tive dificuldade de achar o menino naquela confusão. Em breve, o animador se retirou talvez meio atordoado com tanta gente.
Veio então o momento do "Parabéns pra você" e continuou assim sem muita organização.
Conversando com uma cigana soube ao final todos se retiram ao mesmo tempo levando pratos recheados de coisas boas. E foi bem assim!
Em pouco tempo já não havia mais marcas da festa, tudo já tinha retornado à normalidade.
Reparei que a união é marcante, mas não há quase abraços e beijos entre eles. As pessoas apenas se cumprimentam oralmente e nem o aniversariante recebe muitos presentes. Aliás nem os vi, pra dizer a verdade.
O importante é que festejaram com alegria.





Obs: Abaixo os links de documentários sobre a cultura cigana no Brasil. Vale a pena assisti-los

Repórter Justiça- Ciganos

https://www.youtube.com/watch?v=RJFXUPPCSY8&feature=share

Vida de cigano verdades e mentiras (5 min)

https://www.youtube.com/watch?v=ls-DJesb8BI